sábado, 14 de outubro de 2006

O anjo negro de Lula

Lula já tem seu "anjo negro". Chama-se Freud Godoy. Matéria da Revista Veja desta semana trás em detalhes o papel desta criatura nos bastidores do escândalo do dossiê. Para quem não sabe "anjo negro" era o apelido do segurança de Getúlio Vargas responsável pelo atentado contra Carlos Lacerda, lider da oposição e que resulto na morte do seu "ajudante de ordens", um major da aeronáutica de nome Vaz. Este episódio precedeu o suicídio de Getúlio em agôsto de 1954. Leia a versão da matéria de Veja publicada no site da revista:
"Nas últimas semanas, uma operação abafa foi deflagrada para tentar apagar as chamas mais destruidoras levantadas pelo escândalo da compra do dossiê. Nessa operação aparece o que pode ser a impressão digital de um personagem muito próximo do presidente Lula. Esse personagem é Freud Godoy, ex-segurança pessoal de Lula e que até sua demissão, há quase um mês, ocupava o cargo de assessor especial do presidente. Freud teve seu nome citado pelo ex-policial federal Gedimar Pereira Passos, aquele que trabalhava com "tratamento de informações" na campanha de Lula e foi preso no dia 15 de setembro passado num hotel em São Paulo junto com o petista Valdebran Padilha. Gedimar e Valdebran foram flagrados com 1,7 milhão de reais para a compra do dossiê falso que serviria para ligar os tucanos à máfia dos sanguessugas. Depois de acusar Freud de ser o mandante da compra do dossiê em seu depoimento inicial, Gedimar recuou, retirando a única referência a Freud feita até agora na investigação do caso. Depois desse recuo, Freud tem desfilado por colunas jornalísticas e eventos sociais como um injustiçado. Tudo graças ao "novo" Gedimar, que agora diz ter sido pressionado a entregar o nome de Freud por métodos de tortura psicológica praticadas pelo delegado que o prendeu – Edmilson Bruno, o mesmo que divulgou as fotos do
dinheiro usado para comprar o dossiê. Bruno será alvo de uma investigação interna da Polícia Federal e pode ser demitido do cargo.
O que fez Gedimar mudar sua versão inicial e inocentar o assessor próximo do presidente da República? A apuração dos repórteres de VEJA mostra que a operação abafa seguiu um padrão mais ou menos constante na crônica policial do governo petista. Primeiro se comete um ilícito e depois se seguem outros ainda mais demolidores na tentativa de encobrir o primeiro. A operação faxina do dossiêgate contou com a colaboração jurídica do ministro Márcio Thomaz Bastos (sempre ele), da mãozinha financeira do tesoureiro do PT, Paulo Ferreira, e da força bruta de um cidadão até agora distante do caso: José Carlos Espinoza – como Freud, um grandalhão que trabalhou como segurança de Lula e ganhou um emprego no governo. Espinoza trabalhou no escritório paulista da Presidência da República até se afastar para dedicar-se à campanha à reeleição de Lula. Nessa operação, coube a Márcio Thomaz Bastos conversar com Freud quando o escândalo estourou e indicar a ele um advogado de sua confiança (do ministro, é claro). Thomaz Bastos cobrou esforços diários de Freud, do advogado indicado por ele e do tesoureiro do PT no que parecia ser a tarefa mais urgente: convencer Gedimar a recuar.
Seguindo o mesmo padrão dos escândalos do mensalão e da quebra do sigilo do caseiro, a missão principal de Thomaz Bastos foi a de blindar o presidente da República colocando-o a salvo das ondas de choque das investigações. Tão logo Gedimar foi preso, o ministro telefonou para Geraldo José Araújo, superintendente da PF em São Paulo, para perguntar: "Isso respinga no presidente?". Na semana passada, Thomaz Bastos mobilizou-se para defender o governo depois da notícia divulgada pelo jornal O Estado de S. Paulo dando conta de um depósito de 396.000 reais que teria sido feito pelo investidor Naji Nahas na conta bancária de Freud. Partiu do ministro Bastos a orientação final sobre a forma pela qual Freud e Nahas deveriam negar a história. Eles a cumpriram à risca. Não se tem a confirmação do depósito. Essas operações só são verificáveis com a quebra do sigilo dos envolvidos. Isso é uma violência. Ela foi praticada ilegalmente por um ministro (Antonio Palocci) contra um simples caseiro (Francenildo dos Santos Costa), e isso lhe custou o cargo e um processo criminal. Quebrar o sigilo bancário e telefônico de Freud Godoy é uma violência? Com base nos indícios levantados até agora, o Ministério Público Federal decidiu, na semana passada, fazer esse pedido à Justiça.

A atividade do outro segurança e assessor de Lula, Espinoza, também chamou a atenção dos promotores. Ele foi um personagem ativo na negociação do providencial recuo de Gedimar. Foi no apartamento de Espinoza em São Paulo que se colocou de pé um plano e suas bases materiais capazes de dar a Freud a tranqüilidade necessária para enfrentar as acusações de que estava sendo alvo. Bons amigos, Freud e Espinoza são unidos também pelo devotamento total a Lula. Em seu livro Do Golpe ao Planalto – Uma Vida de Repórter, o jornalista Ricardo Kotscho – amigo de Lula desde 1984, seu assessor em diversas campanhas e secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência até 2004 – refere-se a Espinoza como o "faz-tudo de Lula". Em muitas das viagens de campanha, Kotscho dividia o quarto com Espinoza e Wander Bueno, ex-secretário de Governo da prefeitura de Santo André na gestão Celso Daniel.
Segundo um relato escrito por três delegados da Polícia Federal e encaminhado a VEJA, Espinoza e Freud, acompanhados de dois homens não identificados, fizeram uma visita a Gedimar na noite de 18 de setembro, quando ele ainda estava preso na carceragem da PF em São Paulo. A visita ocorreu fora do horário regular e sem um memorando interno a autorizando. Um encontro com um preso nessas condições é ilegal. Ele pode ser encarado como obstrução das investigações ou coação de testemunha. De acordo com o relato dos policiais, o encontro foi facilitado por Severino Alexandre, diretor executivo da PF paulista. O encontro ocorreu logo depois da acareação regular entre Freud e Gedimar, um encontro de cinco minutos que, segundo o relato oficial, transcorreu em silêncio da parte de Gedimar. O mais interessante, no relato dos policiais, viria a seguir. Severino teria acomodado os petistas em seu gabinete e determinado a Jorge Luiz Herculano, chefe do núcleo de custódia da PF, que retirasse Gedimar de sua cela. Herculano resistiu, pretextando corretamente que o preso estava sob sua guarda e que não havia um "memorando de retirada".
A PF é uma organização altamente profissional mas seus delegados são pessoas, eleitores e têm lá suas ligações políticas com o PT e com seu adversário, o PSDB. VEJA procurou esclarecer se os delegados que narraram as cenas citadas o fizeram por motivação política e, principalmente, se elas podiam ser levadas a sério. Em conversas telefônicas com os três delegados da PF, duas delas presenciadas por repórteres de VEJA, Herculano disse ter obedecido a ordem do delegado Severino de levar o preso Gedimar para um encontro com os petistas. Ele alegou na conversa presenciada pelos repórteres que o fez por receio de problemas futuros com seu superior hierárquico. Disse também que receava confirmar o caso a jornalistas e deu a seguinte explicação: "Depois nossos chefes vão dizer que sou louco e vão tentar me demitir, como fizeram com o delegado Bruno", disse ele. Foi nesse encontro que se armou o recuo de Gedimar? Não se sabe. Os policiais da PF não sabem o que se passou na sala fechada. O carcereiro diz que não ouviu nada. Nem gritos, nem sussurros.
Procurado pela repórter Julia Duailibi na última sexta-feira, o carcereiro Herculano não confirmou a história que narrara aos colegas pelo telefone. Mas deu um jeito de dizer que também não a desmentia. O superintendente da PF, Geraldo José de Araújo, procurado por VEJA, apresentou ao repórter Marcelo Carneiro documentos que provariam que não há possibilidade de Freud Godoy ter visitado Gedimar no dia 18 de setembro. Nos documentos – registros manuscritos das visitas recebidas por Gedimar e de sua saída com destino à cidade de Cuiabá – não há nenhuma referência à entrada de Freud Godoy na carceragem do órgão. Verdade. Freud Godoy não entrou na carceragem. Foi Gedimar, segundo a denúncia dos policiais, quem saiu para se encontrar com o segurança de Lula no conforto do gabinete de Severino.
Freud Godoy encontra-se no meio de um turbilhão. A se confirmar sua visita ao preso Gedimar e caso se prove que ela foi instrumental na mudança de 180 graus nas declarações do preso, ele deve muitas explicações à Justiça. A favor de Freud, é claro, se pode levantar a hipótese de que um homem inocente tem o direito de tentar de todas as maneiras, mesmo as mais desesperadas, provar sua inocência. Outros indícios parecem desacreditar a versão do inocente em estado de desespero depois de ver seu nome envolvido em um crime com o qual nada tem a ver. No encontro no apartamento de Espinoza, Freud e o tesoureiro Ferreira conversaram sobre dinheiro e sobre como ele, sempre ele, poderia manter a calma dos implicados de modo que não se sentissem tentados a envolver gente mais graúda no PT e no governo. A quebra do sigilo bancário de Freud Godoy poderia esclarecer muita coisa – inclusive inocentá-lo de vez. Existem suspeitas de que ele e sua mulher receberam dinheiro sujo do "valerioduto", o mesmo que abasteceu as operações de compra de parlamentares chefiadas pelo deputado cassado por corrupção José Dirceu, ex-ministro-chefe da Casa Civil do governo do PT.


A Caso Comércio e Serviços, empresa de segurança em nome da mulher de Freud, recebeu 98.500 reais da SMPB Comunicação, empresa de Marcos Valério. Outra empresa, a Caso Sistemas de Segurança, recebeu 23.000 reais da Duda Mendonça e Associados. Até agora não há explicação convincente para esses pagamentos realizados entre 2003 e 2004.
Freud foi fisgado pelo Coaf, órgão do governo que monitora operações financeiras suspeitas, em pelo menos uma oportunidade. Em 2006, ele depositou 150.000 reais, em dinheiro vivo, na conta da empresa de sua mulher. A operação foi considerada atípica por duas razões. A primeira é que ela ocorreu em moeda sonante. A segunda é que, naquela data, Freud tinha como única fonte de renda declarada o contracheque que recebia do Palácio do Planalto, no valor de 6.650 reais. Por meio de seu advogado, contudo, Freud limitou-se a informar que o dinheiro foi usado para o pagamento de equipamentos de segurança da empresa de sua mulher.
Em sua ficha de serviços prestados à família Lula da Silva, Freud exibe uma série de tarefas comezinhas. Quando Lula e familiares passavam fins de semana em São Paulo, ele providenciava até as refeições deles. Quando os filhos do presidente queriam assistir a um show de rock sem os apetrechos oficiais, Freud providenciava toda a operação – do ingresso ao transporte, como fez, por exemplo, na apresentação da banda U2, em fevereiro passado, em São Paulo. Nisso, já provocou constrangimentos. Foi ele quem arranjou o DVD pirata do filme 2 Filhos de Francisco, exibido no avião presidencial durante a ida de Lula a Moscou, em outubro do ano passado. Certa vez, numa viagem oficial do presidente a Foz do Iguaçu, Marisa quis presentear familiares com bugigangas do Paraguai. Coube a Freud Godoy ir a Ciudad del Este e voltar com vários embrulhos de presentes, entre brinquedos, perfumes e aparelhos eletrônicos.

Mas as atividades de Freud não ficaram restritas ao trabalho de serviçal. Além de ter gabinete no mesmo andar que o presidente no Palácio do Planalto, Freud acompanhava Lula desde a primeira campanha presidencial, em 1989. Era o segurança mais dedicado, o chamado "mosca", aquele preparado para, em caso de um atentado, se lançar na frente do atirador. Logo depois da posse de Lula, ele tentou se integrar ao esquema de segurança do presidente. Acabou se envolvendo em atritos com os militares responsáveis e se afastou. Mas continuou próximo a Lula. Ele era um dos poucos assessores com trânsito livre no Palácio da Alvorada nos fins de semana. Participava dos churrascos e organizava jogos de futebol. Embora tenha se ocupado com outras atividades nos últimos quatro anos, o ex-assessor nunca se desligou das questões de segurança. Em julho, quando o PT alugou o prédio para sediar o comitê reeleitoral de Lula, em Brasília, Freud encarregou-se de checar as condições do local. A empresa Caso, que no papel pertence a sua mulher, foi contratada pelo PT para, entre outras coisas, garantir a segurança das comunicações e prevenir espionagem. Freud incumbiu-se também de escoltar o tesoureiro caído em desgraça Delúbio Soares em suas andanças por São Paulo com malas de dinheiro.
O governo tem feito um esforço, compreensível dada a proximidade de Freud com o primeiro-casal, para tirá-lo da zona de choque do dossiêgate. No fim de setembro, quando a Justiça Federal decretou a sua prisão temporária, a PF estava impedida de cumprir a ordem judicial por força da lei eleitoral. A PF vazou a decisão judicial, dando tempo para que Freud conseguisse reverter a decisão numa instância superior antes de ser preso. Além disso, antes mesmo de examinar os extratos telefônicos de Freud, a polícia deu a entender que ele deixara de ser suspeito no caso da compra do dossiê. Tudo porque, examinando as chamadas telefônicas realizadas pelos petistas presos com o 1,7 milhão de reais, foram encontradas apenas três ligações entre Gedimar e Freud. Como os telefonemas teriam ocorrido em agosto, um mês antes da compra do dossiê, isso inocentaria Freud de qualquer envolvimento no episódio. Sem que nenhuma autoridade policial assumisse a informação, a versão foi plantada pelo governo nos jornais na semana passada. O número de telefonemas entre comparsas não inocenta ninguém. Mas também não incrimina. Para que Freud Godoy possa retomar sua boa vida de fiel assessor do presidente da República, precisa ser exonerado das suspeitas que pairam sobre ele. Suspeitas que não foram fabricadas pelas "elites", pela "nossa querida imprensa" ou pelo PSDB. Foram lançadas sobre Freud pela própria maneira de ser do PT. "

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